15.11.06

EDUCAR PARA A CIDADANIA NUM NOVO CONTEXTO EDUCATIVO

Maria José Diaz-Aguado
Diversidade de conflitos e das suas manifestações
Propostas de educação para a cidadania democrática
A actual Revolução, a que costumamos chamar de Tecnológica, provoca mudanças de tal amplitude em todas as esferas da nossa vida (família, trabalho, lazer...), que não deixa de ter significado simbólico o facto de coincidir com a mudança de milénio, com a representação do fim de uma época e o começo de outra: mudanças que se caracterizam por fortes contradições e paradoxos, entre os quais:
A dificuldade em compreender o que acontece perante a enorme quantidade de informação disponível.
A ausência de certezas absolutas perante o ressurgimento de formas de intolerância julgadas já superadas.
A necessidade de estabelecer relações num contexto cada vez mais heterogéneo confrontada com a pressão homogeneizadora e a incerteza sobre a nossa própria identidade.
A eliminação das barreiras espaciais na comunicação face ao risco cada vez maior de isolamento e exclusão social.
Estas mudanças alteram as condições em que se efectua o desenvolvimento das crianças e dos jovens, fazendo aumentar os conflitos que vivem e o risco de violência e, em consequência, a necessidade de trabalhar activamente para a sua prevenção.
Convém recordar que o conceito de infância, como uma etapa qualitativamente distinta da idade adulta, surge relacionado com as mudanças provocadas pela Revolução Industrial.
É a partir delas que se reconhece a peculiaridade desta etapa da vida e a necessidade de protecção, separando-a do mundo dos adultos e da sua violência, pelas barreiras que a família nuclear e a escola proporcionam.
As actuais mudanças originadas pela Revolução Tecnológica reduzem a eficácia dessas barreiras expondo as crianças com demasiada frequência a todo o tipo de violência, inclusivamente usando-as, por vezes como seus agentes. Esta nova situação muda a vida das crianças de múltiplas e complexas formas, modificando a representação que os adultos fazem da infância e aumentando a vulnerabilidade das crianças a variadas formas de violência, a ponto de haver o perigo do que se tem chamado o desaparecimento da infância. Tem-se verificado que, nalguns casos de violência, amplamente divulgados na comunicação social nos últimos anos, as crianças e adolescentes que os protagonizam reproduzem guiões impossíveis de inventar naquelas idades, e dispõem de uma informação de como exercer a violência a que até agora não tinham acesso. Uma das tarefas actuais da educação é descobrir novas barreiras que protejam as crianças e os adolescentes deste novo risco de exposição à violência.
Para compreender como as actuais mudanças afectam os jovens convém ter em conta que estes necessitam de construir uma identidade diferenciada, elaborar o seu próprio projecto de vida, descobrindo o que querem da sua vida. Esta exigência origina um alto nível de incerteza que, somado àquilo que as actuais mudanças sociais implicam, pode tornar-se insuportável para alguns jovens; especialmente quando não desenvolveram tolerância face à ambiguidade, quando não aprenderam a viver os conflitos, a dúvida como um elemento necessário para crescer, quando foram educados nas certezas e verdades absolutas.

Diversidade de conflitos e das suas manifestações
A análise dos conflitos que se vivem nos diferentes países da União Europeia, especialmente no que se refere à indisciplina e à violência na escola, obriga a que se tenha em conta que existem situações muito variadas, quer quanto à gravidade dos problemas, quer quanto à forma que assumem: entre uns e outros países, dentro do mesmo país (entre diferentes regiões) e inclusive dentro de uma mesma escola (entre aulas diferentes ou até na mesma aula na relação que se estabelece nas diferentes matérias e/ou com diferentes professores).
Do que ficou exposto no parágrafo anterior conclui-se pela conveniência em compatibilizar o desenvolvimento da consciência de que existem conflitos educativos novos (muito visíveis pela sua presença nos meios de comunicação) para os quais é preciso encontrar novas soluções, com um conhecimento preciso (não sobredimensionado) da amplitude e extensão desses problemas, evitando o erro a que as notícias difundidas por alguns meios de comunicação induzem de acreditar que a violência está presente na maioria das escolas e das relações que nelas se estabelecem.
Como resposta à pergunta frequente se a violência está ou não aumentando nas escolas, predomina neste grupo de reflexão uma opinião que gira em torno da necessidade de considerar tendências contrárias, uma vez que:
aumentou o desejo de erradicar a violência e já são reconhecidas como violência situações (como a humilhação e a ridicularização) que antes eram conceptualizadas com excessiva permissividade;
diminuiu o autoritarismo bem como o risco de violência dos professores para com os alunos, o que nem sempre foi substituído pela necessária disciplina democrática, antes tendo dado origem frequentemente a excessiva permissividade;
as duas alterações mencionadas podem explicar a razão pela qual parece ter aumentado em numerosos contextos os problemas de indisciplina e falta de respeito dos alunos para com os professores (que nalguns casos chegam a atingir a violência verbal e, mais raramente, a violência física);
a violência entre iguais é hoje mais conhecida e denunciada, ainda que seja difícil saber se está aumentando;
o facto de as crianças e os adolescentes disporem hoje de mais informação sobre como exercer a violência faz aumentar os danos que podem causar quando a utilizam.
Considerando globalmente as tendências atrás mencionadas poder-se-á concluir que, de uma forma geral, a violência na escola não aumentou, ainda que tenha mudado de forma, a frequência com que afecta diferentes actores (dando origem a problemas novos às vezes espectaculares), aumentou a gravidade das consequências em casos extremos, e a sua visibilidade nunca foi tão grande.

Propostas de educação para a cidadania democrática
Resumimos as nossas conclusões sobre como adaptar a educação às mudanças e necessidades atrás expostas e educar para a cidadania democrática no século XXI em dez propostas para a acção:
A educação para a cidadania democrática deve alargar-se a todos os processos de ensino-aprendizagem, a todas as actividades que têm lugar na escola; porque através de todas elas se transmitem (bem, medianamente ou mal) as normas e os papeis que os alunos exercerão fora dela. Pelo que não parece conveniente limitar a educação para a cidadania a uma disciplina ou a um momento determinado do horário escolar. Tomar consciência desta realidade ajudará a detectar e a superar possíveis contradições entre as normas e os papeis necessários para uma cidadania democrática e os que a escola pode estar a transmitir, E para superar algumas das contradições que, neste sentido, se detectam mais frequentemente, convém conferir aos alunos um papel mais activo na sua aprendizagem.
Se a escola assume a educação para a cidadania democrática ela deve constituir-se como uma comunidade democrática, porque a democracia aprende-se com a prática. Convém, por isso, avançar para lá da democracia representativa (existente na maioria das escolas) desenvolvendo uma democracia participativa, proporcionando aos alunos experiências que tornem realidade os velhos ideais da democracia: a liberdade, a igualdade e a fraternidade, sem esquecer este último, para o qual é necessário que cada indivíduo seja reconhecido e respeitado pelos demais, de forma a sentir-se um membro importante da comunidade a que pertence. E convém não esquecer que esta necessidade toca também os professores.
Educar para a democracia exige que seja posta em prática uma das suas características mais essenciais: a distribuição do máximo de poder entre todos os indivíduos.
Neste sentido, para que os alunos se apropriem do significado do contacto social da democracia convém que desde a escola participem activamente nos diferentes tipos de poder que o definem:
O poder legislativo, elaborando as normas que regulam a convivência escolar e a definição dos deveres e direitos dos indivíduos dentro da escola.
O poder executivo, através do qual são postas em prática as referidas normas e tomadas as decisões que possibilitem o exercício dos deveres e direitos previamente definidos.
O poder judicial, que se encarrega de aplicar as sanções quando são praticadas graves transgressões às normas de convivência.
Tanto os estudos científicos como as diversas experiências educativas mencionadas no grupo de trabalho reflectem que, quando as crianças e os adolescentes participam activamente em tudo o que se relaciona com as normas de convivência, se comprometem muito mais no seu cumprimento do que se não tivessem participado.
Educar para a cidadania exige que se ensine a respeitar limites de forma democrática. E para consegui-lo, convém ter em conta que embora se tenha avançado no combate à disciplina autoritária, esta nem sempre foi substituída pela necessária disciplina democrática, que é preciso promover para prevenir alguns dos problemas que se agravaram nos últimos anos; procedimentos disciplinares que devem ajudar o aluno, que transgrediu as normas de convivência, a entender o seu significado, a pôr-se no lugar das pessoas que possa ter prejudicado e a reparar o dano causado; incluindo a adopção de medidas disciplinares no contexto de democracia participativa, descrito no parágrafo anterior.
A educação para a cidadania deve ensinar a resolver conflitos e aplicar este ensinamento aos conflitos que surgem na escola assumindo que estes são parte inevitável da vida; e que quando estes são tratados de um ponto de vista construtivo, podem converter-se em motor de desenvolvimento, mas quando não se resolvem podem deteriorar a qualidade da educação e aumentar o risco de violência. Para ensinar a resolver conflitos é conveniente estabelecer na escola contextos normalizados (como as assembleias de turma, ou as tutorias) em que a remediação dos conflitos não resulte em ameaças para ninguém e em que, de forma periódica, todos e todas possam expressar as tensões e resolver os conflitos quotidianos de forma construtiva (através do diálogo, da negociação, da mediação...).
A eficácia da escola na educação para a cidadania democrática melhora quando também melhora a qualidade de vida de todas as pessoas que nela se encontram; conclusão que afecta não só a qualidade de vida dos alunos, mas também a qualidade de vida dos professores. Convém ter em conta, neste sentido, que a maioria dos comportamentos destrutivos que nela surgem são de natureza reactiva e que o risco aumenta quando o nível de tensão e de stress que ali se vive supera a capacidade para afrontá-lo sem violência. Assim, para prevenir, convém:
desenvolver capacidades para enfrentar o stress, a incerteza, a tensão (como as competências para a vida incluídas no curriculum escolar em diversos países europeus) sem reacções destrutivas;
e reduzir a tensão e o stress (melhorando a qualidade de vida) de todas as pessoas que convivem na escola.
A distribuição do poder, essencial na educação para a cidadania democrática, tem, para além da sua dimensão social, uma dimensão individual de grande significado na qualidade de vida das pessoas; a isto costuma fazer-se referência em diversos foruns internacionais com a expressão “empowerment”.
A educação pode desempenhar um papel decisivo no desenvolvimento desta dimensão também no aspecto individual, contribuindo para que cada aluno e aluna defina os seus próprios projectos escolares, desenvolvendo assim o poder de controlar e decidir a sua própria vida (definindo objectivos e meios para os alcançar, desenvolvendo a capacidade de se esforçar por consegui-los, superando os obstáculos que frequentemente surgem no referido processo...). Convém ter em conta que o sentido de projecto melhora a qualidade de vida das pessoas e diminui o risco de reagirem através de comportamentos destrutivos.
A educação para a cidadania democrática exige que sejam postas em prática novas e mais estreitas formas de colaboração entre a escola e a família, incrementando a presença, o poder e participação dos pais na vida da escola. Para isso é preciso estabelecer novos esquemas de colaboração, baseados no respeito mútuo (respeito pelo papel que cada agente educativo desempenha), orientando a colaboração no sentido de procura conjunta de soluções para fazer face um problema comum: adaptar a educação às exigências de uma sociedade em que as principais instituições educativas, caracterizadas até ao presente pelo seu isolamento, já não estão nem podem estar isoladas.
Todas as inovações necessárias para educar para a cidadania democrática exigem a existência de condições que permitam aos professores levá-las a cabo. Neste sentido convém ter em conta a necessidade de apoiar os professores, dando-lhes a possibilidade de adquirirem as competências necessárias e criando condições que possibilitem a cooperação entre eles; sem cair na tendência frequente de sobrevalorizar as possibilidades dos professores de desenvolverem objectivos muito complexos sem os meios necessários, nem na tendência contrária, subvalorizando a capacidade de alguns profissionais para adquirirem as competências necessárias que permitam adaptar a educação às exigências da situação actual.
Educar para a cidadania democrática exige que a escola coopere de forma muito mais estreita do que até ao momento, com o resto da sociedade, incluindo neste sentido não só a cooperação já mencionada com as famílias, mas também com outros agentes sociais (como as organizações não governamentais, os conselhos e administrações locais...). O que equivale a reconhecer, uma vez mais, que o não isolamento da escola em relação ao resto da sociedade não só está na origem de muitos dos seus problemas actuais, mas também pode estar na origem da sua solução. Para que a balança se incline nesta segunda direcção é preciso incrementar e melhorar a colaboração da escola com o resto dessa sociedade, da qual já não pode estar isolada.

Comunicação proferida no âmbito da Conferência "EDUCAÇÃO, INTEGRAÇÃO, CIDADANIA: da Autonomia ao Desenvolvimento Curricular" que se realizou em Sta. Maria da Feira, de 10 a 11 de Abril de 2000, sob a égide da Presidência Portuguesa da União Europeia.
*Maria José Diaz-Aguado é Catedrática de Psicologia da Educação na Universidade Complutense de Madrid e foi a Relatora do grupo de reflexão sobre CONFLITOS SOCIAIS E EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA na Conferência referida acima.


PONTOS DE VISTA